Era 2097. Já era perceptível, logo criança, o quanto aquele cérebro poderia ser criativo e científico. As escolas, através de tecnologias já implementadas, conseguiam ler os pensamentos das crianças, com o intuito de evitar distúrbios. E além disso, mantinham funcionários atentos aos pensamentos das supercrianças. Para essas havia uma política específica: cada hipótese pensada ou articulada naqueles cérebros criativos eram enviados a um computador matriz, e uma inteligência artificial escreveria páginas e páginas de livros a favor e contra tais hipóteses. No fim, um agente último seria encarregado de últimos reparos para que ambas as ideias fossem encaixadas na linha atual de desenvolvimento do pensamento, como se pretendessem manter o status quo, dando uma nova aparência às coisas como elas sempre foram. Num mundo pós verdade, esses livros eram distribuídos por “autores”, contemporâneos, que aceitavam participar da política, ou do passado, que nunca existiram, criando assim uma legitimidade destes. Assim, enquanto o pensamento dessas supercrianças se desenvolviam durante sua vida escolar, iam sem querer se enquadrando numa normatividade segura de pensamento de um coletivo posto, com simbologias e preocupações de seus contextos históricos. Portanto, nenhuma revolução era praticada, apenas reformas residuais a fim de fazer o coletivo acompanhar as mudanças, mas que não fossem rupturas abruptas que mudaria o curso daquele povo repentinamente. Ne-a era uma dessas supercrianças, odiava quando, na universidade, um autor de um livro clássico dizia tudo aquilo que ela um dia cogitou em sua mente. Morava com sua avó e, todo mês, seu cartão de crédito - que já não tinha um limite tão alto - explodia. Cansada dos boletos e de trabalhar incansavelmente num posto de abastecimento de lítio, estudava alguma forma de reverter as mudanças climáticas que já explodia seus miolos de tanto calor. Ela fazia Engenharia de carbono na universidade Elmusk, conseguiu uma bolsa que, mesmo ela, não sabia como passara na prova. Sua vó, doente pelas fumaças de toda uma vida, de pele seca e já sem cabelos devido a radiação (aos 40 todos já estava carecas), não acreditava em nada do que sua neta dizia. “Aquecimento global é balela!”, “Na minha época, tinha petróleo, era tudo maravilhoso!”, frases assim a desmotivava e uma distância no pensamento, não só de sua avó, mas de seus companheiros do posto, amigos, tudo isso a deixava isolada e cada vez mais desesperançosa, embora mantivesse alguma chama bem no fundo.
Assim, não só ela, mas todas as pessoas de sua geração se fecharam em seus universos particulares, elas já não emitiam voz pela laringe, já que conseguiam se conectar e dialogar pelo cérebro. Numa rede de conexão, o que poderia parecer uma rede social de outrora, ela reencontrou uma amiga de infância, e lembrava que aquela tinha sido a única pessoa capaz de conversar vividamente sobre aquele mundo vivido. Com ela conversava pela laringe, questionavam as comidas da escola e falavam em tecnologias que pudessem superar a necessidade de água. Marcaram de se ver e num primeiro momento já percebera várias marcas de cortes em seu pulso, outros em várias partes das pernas.
Embora tivessem assuntos em comum, sua amiga não era uma supercriança como ela, pelo contrário, ela fazia parte de um nicho que uma recém descoberta científica convencionou chamar de Fell all.
Essa antologia inspirada no texto "Os sente muito" Publicada no blog em 30/05/2023.
Link para ler Os sente Muito: https://www.palavrasbrutas.com/post/os-sente-muito
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Caio Resende
Apenas
um
homem
cansado
à
procura
de
abrigo.
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